Em
23 de janeiro de 1992, Corinthians e São Paulo faziam uma partida pela Copa São
Paulo de Futebol Júnior no estádio do Nacional Atlético Clube, na capital
paulista, quando um explosivo caseiro lançando de um lado a outro da
arquibancada atingiu Rodrigo de Gasperi. Ele morreu quatro dias depois, vítima
de seis traumatismos cranianos e uma lesão cerebral, aos 13 anos de idade. A
opinião pública despertava definitivamente para aquilo que parecia um problema grave
e crescente: a violência nos estádios de futebol.
Falar
de violência nos estádios seria mais ou menos como falar da violência nos
botequins e criar grupamentos especiais de polícia para bares. Ou da violência
nas zonas de prostituição e criar unidades de polícia pacificadora da luz
vermelha. Ou falar da violência nas favelas e criar uma unidade de políc, ops,
essa já existe. A extrema violência não é um problema dos estádios, dos bares,
das zonas, das favelas, embora tenda a ser mais aguda nesses lugares. Mas isso
é só porque, ao contrário das ruas dos bairros nobres, cercadas de cancelas,
seguranças particulares, câmeras de vigilância e toda a cordial atenção
prestada pelo aparato estatal, são sonegados sistematicamente os mesmos cuidados
à periferia e a todo e qualquer lugar frequentado por pobres pretos ou quase
brancos quase pretos de tão pobres.
Ainda
lembro do tom de espanto que permeava as matérias telejornalísticas no começo
dos anos 90 pela violência urbana causada pelos cartéis na Colômbia. Na
Colômbia, a coisa tava feia...
No
mesmo ano em que Rodrigo de Gasperi morreu num estádio, dezenas de presos foram
trucidados pelas tropas de choque do estado de São Paulo na Casa de Detenção do
Carandiru.
No ano seguinte, em junho e agosto de 1993, outras dezenas foram
massacrados na Candelária e em Vigário Geral, no Rio de Janeiro.
A
ressaca da Guerra Fria, da hiperinflação, das seguidas crises econômicas, do
projeto liberal dos anos 70/80, apertou o cinto nas periferias e bateu forte na
cabeça do terceiro mundo. E uma das heranças mais macabras dos regimes
militares foi o empoderamento dos trogloditas que executavam o plano de
repressão no dia-a-dia e dos muitos boçais que lutavam do lado oposto da
trincheira. A maioria deles, dos dois lados, está no poder hoje.
São
22 anos entre a morte de Rodrigo de Gasperi e a morte de Márcio Barreto de
Toledo, de 34 anos, torcedor do Santos espancado por um grupo de torcedores do
São Paulo na Zona Leste depois do clássico do último domingo. “22 anos e a
gente ainda não resolveu a questão da violência nos estádios”, ouvi na TV.
Um
dia depois da morte do torcedor, a PM carioca matou de porrada um adolescente
em Madureira. Ele não estava torcendo para ninguém, estava sem camisa andando
de moto com um amigo. Talvez tenham se confundido, queriam matar outro e
acabaram pegando o moleque errado.
São
pobres também, os PMs que mataram o moleque.
Ontem,
deram 50 tiros de fuzil num PM que dirigia um carro na periferia de Niterói.
São pobres matando pobres, uma guerra deflagrada há décadas na periferia, e é
ótimo que os pobres se matem uns aos outros. Sempre que um pobre acredita que outro pobre é quem o oprime, a alma de um milionário é encomendada ao Céu. Pobres se matando é algo que deve contribuir
para reduzir a sensação de medo nas grandes cidades e, ao mesmo tempo, regular
a superpopulação. Talvez um dia falte gente para gritar nos estádios, limpar
latrinas e fazer a segurança particular das ruas dos bairros nobres. Mas aí
sempre existirão bolivianos, angolanos e haitianos. E, quando eles começarem a
ser muitos, mais cedo ou mais tarde acabarão se matando nas ruas das periferias.
Ou nos estádios de futebol.
Imagina
na Copa?
Sempre
fui e continuo sendo a favor da Copa e da construção de estádios enormes,
modernos e tudo mais. O Brasil é uma das cinco maiores economias mundiais e não
acho justo enfiar o povo que mais joga e mais entende de futebol no mundo em galinheiros
de concreto. Não é justo conceder financiamento para hotéis de luxo, portos,
aeroportos, bancos, fazendas de gado e soja, e negar crédito para que se
construa estádios para os brasileiros assistirem decentemente às partidas de
futebol. Seria mais uma marca de péssima distribuição de renda. Apesar de que o
preço dos ingressos praticado nos novos estádios deixa cada vez mais claro que
não foi bem para eles que as reformas foram feitas. Em todo caso, acho difícil
que morra sequer um passarinho dentro de um estádio durante a Copa do Mundo. Depois,
não sei.
Pelo
sim, pelo não, melhor acender uma vela. Pelo Haiti.